Crítica do Fenata: “Não gasto meus dias brigando com Deus”

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Os alunos do curso de Letras da UEPG estão preparando textos de crítica sobre os espetáculos da 47ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata). As críticas são orientadas e revisadas pela professora Paola Scheifer. Sobre a peça “A Receita”, participante da Mostra Adulto na noite de sábado (26), leia a crítica:


“Não gasto meus dias brigando com Deus”

Em apenas quarenta minutos de espetáculo, o NAC – Núcleo de Artes Cênicas SESI, de São José dos Campos (SP) – por certo desestabilizou algumas certezas do público que prestigiou a penúltima noite de apresentações da Mostra Adulto, do 47º FENATA. O grupo, constituído em 2017, a partir de uma ação formativa do SESI, se apropria do texto de Jorge de Andrade – escrito em 1968 e, ainda, muito atual – para provocar questionamentos sobre a exploração do ser humano por seus iguais. A miséria humana é abordada no espetáculo de maneira frontal, direta e perturbadora – porque extremamente verossímil.

O primeiro diferencial da peça se apresenta no modo de recepção do público, efetuado por uma banda formada por três atores que executam músicas populares brasileiras questionadoras e problematizadoras da situação social do país. Durante o espetáculo, o conjunto mantém-se a acompanhar as canções entoadas pelos atores e pelos demais efeitos de sonoplastia.

A entrada dos atores em cena é bastante significativa e simbólica, pois o elenco adentra o espaço cênico cantando o Hino Nacional em ritmo de forró que, ao longo da execução, mescla-se com a música Admirável Gado Novo, de Zé Ramalho.

O figurino é o primeiro elemento que salta aos olhos do espectador. Extremamente bem composto, segue uma paleta de cores que se remete à gangrena e imerge o espaço cênico em sangue durante toda a encenação. A utilização de bandeiras do Brasil, como base do figurino de todos os personagens, parece indicar, desde o início do espetáculo, que a gangrena da qual o espetáculo trata não é somente a do personagem, mas, também, das várias esferas do país acometidas por ela.

O cenário é bastante econômico, composto apenas por andaimes ao fundo do palco (sobre os quais a banda se posiciona), banquetas giratórias, nas quais se instalam os atores que representam o pai e uma das filhas, e a cama, sobre a qual está o filho com o pé gangrenando – que na maior parte do espetáculo ocupa o protagonismo da ação. A economia de elementos cênicos parece refletir a escassez de componentes básicos na vida da família representada, no entanto, o minimalismo presente no palco é valorizado pelos efeitos que a iluminação propicia às cenas. Essa, em conjunto com a sonoplastia, é responsável por criar os ambientes e efeitos pretendidos.

O enredo é centrado na história de Devair, filho mais velho de uma numerosa família. Em cena, o núcleo familiar do personagem é representado por sua mãe, sempre com um filho ao colo e constantemente preocupada em perder mais um por falta de acesso a serviços básicos de saúde; por seu pai, que permanece no bar durante toda a encenação; por uma irmã que se prostitui para escapar da miséria, pois o bordel lhe garante quatro boas refeições ao dia, e, ainda por uma irmã com problemas mentais que se comunica somente com ele.

As escolhas cênicas para a representação dos personagens são desconcertantes. A mãe, o pai, a filha que se prostitui e o doutor são representados por dois atores que se intercalam nas cenas. Em um primeiro momento, a impressão é a de que a intenção é representar dois momentos da vida de um mesmo personagem e reforçar o processo cíclico de enfrentamento das mesmas adversidades ao longo de toda a vida. Conforme a peça avança, porém, fica claro que essa dupla representação se refere, também, à multiplicidade de brasileiros e brasileiras que enfrentam as mesmas situações adversas em seu cotidiano, atribuindo uma polifonia ímpar às performances que causam um efeito acachapante sobre o público.

Somente a filha com problema mental aspectos sociais relevantes que dificulta a escrita de uma análise sucinta. A figuração da filha que se prostitui, por exemplo, problematiza as formas modernas de escravidão, pois qé representada por três atrizes e não por duas. Escolha assaz interessante quando consideramos que o número três representa a unidade entre mente, corpo e espírito, antagonicamente ao que a personagem transmite na superfície. Parece-me que a escolha aponta diretamente para a consciência oculta sob a aparente insanidade da personagem, problematizando os pré-conceitos, os estereótipos e os pré-julgamentos.

Apesar de curta, a peça aborda tanto que outro nome pode-se atribuir a uma relação laboral em que o empregado troca seu trabalho por alimento, necessidade básica do ser humano? O pai, que não se afasta do bar, pede perdão constantemente à filha que se prostitui porque não lhe foi apresentada outra possibilidade de vida. Aparentemente, o personagem refugia-se no álcool para tentar distanciar-se da lembrança sofrida que o corrói. Por outro lado, de que outros recursos esse pai dispunha para proteger a “mais bela e perfeita” filha de seu destino inelutável?

A mãe de Devair sofre com a situação do filho e narra com tristeza a morte de outros dois por falta de atendimento médico. Sua preocupação mais urgente, porém, é que o filho se restabeleça para retornar ao trabalho, pois ele é responsável em grande parte pelo sustento da família. A filha com problemas mentais é encarada pela mãe como inútil, pois como em nada contribui para aplacar a miséria da família, representa apenas o consumo dos escassos recursos. Impossível não se questionar: qual é o tempo disponível para demonstrar afeto, investir nas relações familiares e na formação humana, quando há questões tão imediatas como a fome para resolver?

A percepção dada ao espectador em relação à irmã de Devair é a de que a personagem representa uma ausência de sanidade causada diretamente pelas precárias condições sociais e econômicas em que a família vive. A precária organização social, a fome e a miséria são enlouquecedoras e a loucura, nesse contexto, parece ser uma manifestação da insatisfação e da revolta capazes de liquidar a sanidade de qualquer um. Indício disso é que a insanidade da personagem se manifesta de forma mais intensa à medida que o problema de Devair se agrava. O espetáculo problematiza, portanto, o próprio conceito atribuído à loucura.

Refletindo sobre o nome do espetáculo, os remédios podem tratar as doenças decorrentes da miséria, mas qual é a receita capaz de curar a alma submetida a uma sociedade onde o bem-estar social é quase inexistente e os indivíduos tratados de forma tão violenta?

O doutor, aparentemente, reflete o cidadão brasileiro alheio à situação de miserabilidade em que vive grande parte da população do país. O personagem, a princípio, não compreende como a família pode deixar de consumir alimentos ricos em proteína vivendo em uma fazenda. O personagem ressalta que ouviu dizer que as pessoas não trabalham e não têm o que comer, porque não querem e não se esforçam. Alerta de verossimilhança: qualquer correspondência com o cidadão brasileiro alienado que homogeniza e estereotipa o outro sem conhecer sua realidade é mera coincidência?

O convívio com a família de Devair provoca no médico questionamentos em relação à relevância de sua trajetória acadêmica, pois apesar de formado para tratar de pessoas, aparentemente desconhece a situação real da maioria delas, que planta e produz para o consumo de outros, fenecendo por carência alimentar. Nas entrelinhas, há um constante questionamento em relação à validade de um trabalho árduo exclusivo para proporcionar a colheita a outro grupo de indivíduos, porém, nunca àquele que semeia.

O doutor se desespera ao perceber que não é somente Devair que precisa se tratar, pois tudo e todos ao seu redor estão também podres e gangrenando. A putrefação no pé de Devair, causada pelas situações precárias em que toda a família trabalha, começou em um dedo, tomou todo o pé e apresenta potencial para continuar se espalhando. Ao apreciar o conjunto do espetáculo, é perceptível ao espectador que a gangrena reproduz a necrose presente na estrutura da sociedade brasileira, propositadamente planejada para cercear e excluir. A metáfora consiste em perceber que a ferida no pé do personagem pode ser também comparada à destruição que se alastra paulatinamente em nosso país.

O som de facas sendo afiadas transmite sem que seja necessário dizer textualmente a necessidade premente de que o pé gangrenado seja amputado, sem salvação possível para o tecido já necrosado. Admitindo que a gangrena de Devair reproduz a gangrena do Brasil, a conclusão é a de que algumas esferas estão podres a ponto de precisarem ser amputadas, pois não há esperança de renovação.

Devair se recusa a amputar o pé gangrenado, mas a irmã insana – que a esse ponto da narrativa parece ser a única consciente – insiste que é uma atitude necessária. Em uma cena muito forte, as três atrizes que representam a personagem amputam o pé gangrenado com machados. A impressão que fica dessa cena é a referência a um povo que mesmo diante da gangrena social, hesitam em extirpá-las, atuando na manutenção de um status quo arquitetado para oprimir eles mesmos. Nesse sentido, a amputação da gangrena justamente pela irmã considerada insana demonstra ser o maior indicativo de sua consciência.

Por fim, acredito que um dos maiores incômodos durante a encenação seja causado por uma frase enunciada de forma recorrente pelo pai de Devair no início do espetáculo: “Não gasto meus dias brigando com Deus”. Ao ser enunciada por um personagem que se mantém praticamente imóvel ao longo de toda a execução da peça, a frase parece simbolizar a imobilidade do povo brasileiro, que mesmo vendo seus pares definhando, nada pode ou nada quer fazer.

Texto: Aline Cezar Schwab, graduanda do 4º ano do curso de Letras Português/Espanhol da Universidade Estadual de Ponta Grossa

Foto: Aline Jasper


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