

Uma história de 4,5 bilhões de anos, contada por quem se dedica a estudá-la. Em celebração ao Dia da Terra, 22 de abril, pesquisadores da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) contam a história de um planeta que se transformou – e segue se transformando, ao longo das eras, e proporcionou o surgimento da vida – e revelam o que o torna tão especial.
O tempo geológico é diferente do tempo humano, mas para melhor contar a história da Terra, se utiliza o calendário como alegoria para explicar as diferentes eras e transformações que o planeta viveu. A jornada do planeta inicia com sua formação, representada pelo mês de janeiro, até os dias atuais, como se estes fossem o final do calendário, 31 de dezembro.
4,5 bilhões de anos preservados
A saga do planeta Terra segue viva no coração do Campus Uvaranas da UEPG, o Museu de Ciências Naturais (MCN) da Universidade foi projetado para contar a história do planeta, desde a origem até o presente momento, proporcionando ricos momentos de reflexão para os visitantes do Museu. Por meio da difusão de diferentes áreas do conhecimento, o MCN tem a complexa missão de contar a história da grande casa comum, de forma didática e inovadora.
Das rochas que vieram do espaço às que emergiram das profundezas da Terra, das menores criaturas que rastejam aos grandes dinossauros que habitaram este planeta – esses são alguns exemplos presentes na rica coleção do MCN-UEPG. Essas descobertas são fruto de pesquisas científicas realizadas nas diversas áreas do conhecimento que convergem para contar a história comum a todos os seres – vivos ou não.
O coordenador do MCN, professor Antônio Liccardo, do Departamento de Geociências da UEPG, destaca que a proposta do Museu é justamente “reintegrar” conhecimentos. “A ciência se especializa em diferentes áreas, como a Biologia e a Geografia. Mas também é necessário reunir o conjunto de informações para que o público entenda que a Terra é um conjunto de processos naturais que atuaram em conjunto para formar essa linda história que contamos aqui”, ressalta.
Para Liccardo, o papel do Museu e dos conhecimentos sobre a Terra é devolver à humanidade uma conexão perdida com a natureza. “Nosso objetivo é resgatar um equilíbrio e auxiliar as pessoas a se enxergarem como parte deste mundo, para também compreenderem o impacto que causam na natureza”. Enquanto a ciência engatinha para desvendar os mistérios da Terra, o Museu e a Universidade desempenham papel fundamental para guiar as pessoas: “é utópico e ousado, mas precisa ser feito”.
“Eu gosto de observar o nosso mundo e entender a complexidade de informações que estão perfeitamente conectadas e dão sentido à realidade. É muito satisfatório quando entendemos os princípios que regem o nosso mundo.”
Da poeira ao planeta
Se a história da Terra pudesse ser sintetizada em um calendário, o ano inicia com a explosão de uma nebulosa, uma nuvem de gases e poeira, cujos fragmentos dão origem a uma estrela – nasce o Sol! Um enorme disco de fragmentos que gira em sua órbita, chamado disco protoplanetário, dá origem a uma série de pequenos corpos celestes ao seu entorno; pela força da gravidade, as partículas se unem e à medida que crescem atraem fragmentos maiores, dando origem aos planetas, luas e asteroides que compõem o sistema solar.
Entre eles, nasce um planeta rochoso, cujo calor gerado pelo impacto dos seus componentes, aliado à gravidade, formou um núcleo sólido à base de ferro. No início, este planeta se assemelhava a uma bola de fogo, constantemente bombardeada por meteoritos. Este período, chamado de Hadeano em referência ao inferno da mitologia grega, também é marcado pelo impacto de um corpo celeste que partiu parte da Terra, dando origem à Lua, e provocou mudança em seu eixo de rotação.
Este período, ou éon, que compreende os meses de janeiro e fevereiro, permanece um enigma para ciência. Grande parte dos registros dos primórdios da Terra vem do espaço, representados pela queda de meteoritos mais antigos que o próprio planeta. “Esses corpos celestes são como cápsulas do tempo, porque eles guardam o material original de quando tudo estava se formando. Estão aí até hoje rodando o Sol, como testemunhas daquela bagunça toda que foi a criação dos planetas”, explica o professor Marcelo Emílio, do Departamento de Geociências da UEPG e coordenador do Observatório Astronômico da Universidade. A coleção do MCN-UEPG conta com um exemplar de meteoro caído na Terra com mais de oito bilhões de anos.
“O que faz a Terra ser um planeta extraordinário é o fato dela abriga algo raríssimo no cosmos: a própria vida. Em meio a um Universo tão vasto e cheio de planetas, até hoje a Terra é o único lugar onde sabemos que a vida existe”.
O espaço conta a história da origem da Terra, mas são suas rochas que dão pistas sobre os diferentes processos de transformação pelas quais o planeta passou ao longo das eras. Elas guardam as marcas dos fenômenos ocorridos ao longo de bilhões de anos, dos terremotos que dividiram o solo às erupções vulcânicas que ergueram continentes, passando pelas chuvas que arrastaram sedimentos ao fundo dos rios e as marcas deixadas pelos seres vivos; todos os eventos geológicos ocorridos ao longo de quatro bilhões e meio de anos culminaram no planeta que habitamos hoje, aliados às mudanças climáticas ocorridas, permitiram o surgimento da água e da atmosfera, que futuramente estimulariam o surgimento da vida.
O professor Gilson Burigo, do Departamento de Geociências da UEPG, caminha por entre as rochas que compõem o Jardim Geológico do Museu de Ciências Naturais; ele é um geólogo, um cientista dedicado ao estudo da terra. “A Geologia nos permite examinar cada um desses materiais que compõem a geodiversidade do planeta e com isso resgatar essas pistas que nos permitem contar essa história. A gente compara nosso trabalho ao de um detetive, que reúne as evidências que estão preservadas nesses materiais para contar como o planeta evoluiu”, explica, enquanto observa atenciosamente detalhes nas rochas.
“Eu acho que a UEPG pode se orgulhar bastante da trajetória que construiu dentro de geociências. Nós temos uma forte tradição no que diz respeito ao levantamento de informações para compreender melhor as características geológicas, sobretudo da nossa região”. Burigo destaca que para além de trazer respostas sobre a formação do planeta, a Geologia exerce papel fundamental na conscientização das pessoas sobre os recursos que ele dispõem para garantir, de forma sustentável, a continuidade da vida. “Com isso, a gente tem esperança de que nós estamos formando cidadãos com uma consciência mais adequada sobre a geodiversidade e saibam enfrentar os grandes desafios postos hoje em dia”.
“O que realmente me encanta nesse planeta Terra é a diversidade de produtos e processos, ligados a um mundo que não está vivo, mas possibilitou o florescimento da vida. Um planeta rico em minerais e rochas e que nos fascinam e que nos sustentam”.
A vida triunfa no caos
Até o final do primeiro semestre, o planeta passa por uma série de transformações que o aproximaram da sua forma atual. Durante o período Arqueano, datado entre 4 e 2.5 bilhões de anos – ou entre fevereiro e junho, segundo o “calendário”; a superfície da Terra esfria, se transformando na crosta terrestre rochosa e dando forma ao primeiro oceano, que cobriu todo o planeta em água. Os processos vulcânicos e tectônicos fazem surgir das águas as primeiras porções de terra que darão origem ao supercontinente Vaalbara.
É nesta Terra de oceanos ácidos, raios solares extremamente radioativos, constantes erupções vulcânicas e descargas elétricas que surge o inesperado- vida. As primeiras formas de vida conhecidas eram microorganismos unicelulares simples, que absorviam dióxido de carbono (CO2) da atmosfera carregada de gases tóxicos. “O planeta não era propício para o surgimento da vida, mas ela surge. Ela emerge ao acaso, aproveita as brechas que surgiam em meio ao caos e molda as próprias condições para a sua existência”, brinca o professor Marcos Pileggi, referência em microbiologia e evolução.
No laboratório de Microbiologia da UEPG, no Campus Uvaranas, o professor Marcos Pileggi entrega às suas alunas uma placa de Petri contendo um dos seres vivos mais antigos do planeta: um conjunto de cianobactérias, similares àquelas surgidas nos primórdios da vida e que se “alimentavam” de carbono e da extrema radiação solar. As amostras integram o projeto Micromuseu, que leva ao público do MCN UEPG o universo invisível desses pequenos seres.
O triunfo dessas pequenas pioneiras também está impresso na pedra e pode ser testemunhado por quem visita o museu e conhece seus fósseis de estromatólitos, colônias de bactérias que se reúnem em estruturas rochosas; com mais de 3 bilhões de anos de idade. Elas dão pistas à ciência sobre como surgiu a vida na Terra.
Pileggi destaca que o surgimento exato da vida se mantém como um mistério para os cientistas. “A ciência não tem uma definição clara sobre como foi a origem da vida, porque o próprio conceito de vida não tem uma definição clara, quando pensamos, por exemplo, nos vírus modernos. E esse desafio traz um incômodo muito importante, afinal a ciência não está do lado da verdade, mas das dúvidas que motivam a sua busca”, exalta o professor, com empolgação.
“O acaso do surgimento da vida me encanta. Este planeta é tão bom para a gente viver hoje, porque, evolutivamente, ele foi construído pela própria vida para recebê-la.”
As primeiras formas de vida tiveram papel fundamental em moldar o mundo, da mesma forma que foram moldadas pelos fenômenos naturais, não apenas da Terra, mas do ar que circunda o globo. Ao produzir oxigênio, as primeiras cianobactérias moldaram a atmosfera a uma condição que futuramente permitirá o surgimento de outros seres vivos; mas o ar que respiramos tardaria a chegar, pois o mundo passaria por uma série de mudanças climáticas.
No Laboratório de Climatologia da UEPG, a professora Karin Hornes não apenas observa o comportamento do Clima na atualidade, mas se dedica a compreender seus ciclos naturais e o seu impacto no planeta ao longo do tempo. Ela explica que as variações climáticas – e seus ciclos de décadas, séculos e até milhões de anos; foram essenciais para construir o planeta como o conhecemos. “Ao longo da história, o planeta Terra passou por inúmeras mudanças climáticas. Oscilações e alterações climáticas podem determinar a vida a extinção ou a necessidade de adaptação e evolução de determinadas espécies”, ressalta.
Ao longo das eras, o clima no planeta foi marcado por extremos, oscilando entre períodos de calor e frio prolongados. Entre o Permiano e o Triássico, por exemplo, a temperatura da Terra ultrapassava os 50 graus, muito acima da média atual, de 15 graus. “Quem diria que que durante o Devoniano, Ponta Grossa teve uma praia em um clima muito mais frio que o atual”, brinca a pesquisadora, ao citar exemplos sobre o papel do clima na formação do mundo.
Ao longo das eras, as mudanças climáticas foram causadas por diversos fatores- erupções vulcânicas até a queda de meteoros deixaram sua marca na atmosfera, da mesma forma que a ação humana. “Espero que possamos refletir sobre o nosso papel enquanto passageiros deste ponto azul que contém vida em abundância em um vasto universo. Que nossas ações sejam sempre no sentido de melhorar e respeitar a vida deste planeta que é único”, declara Hornes.
Não sabemos quanto tempo uma estrela irá brilhar, mas sabemos que o seu brilho nos ilumina. Não sabemos o nosso tempo de vida, mas sabemos que nossa vida não teria sentido se estivéssemos sozinhos neste planeta. Nossa função aqui é sermos jardineiros.
Vida e morte
Um dos mais ricos acervos paleontológicos do Brasil se encontra na UEPG; sob coordenação do Grupo Palaios, do Departamento de Geociências, ele reúne inúmeras fileiras com os fósseis de mais de cem mil animais e plantas que viveram na Terra, sobretudo no período Devoniano, quando a região era parte de um grande oceano. Toda esta diversidade revela que, ao longo dos bilhões de anos, a vida que passou a existir na Terra enfrentou diversos ciclos de morte e renascimento.
Próximo ao final do ano, o período Proterozóico (2,5 bi a 541 milhões de anos) é caracterizado pelas intensas atividades sísmicas, que aumentaram as terras continentais. A atmosfera agora está acumulada de oxigênio devido à fotossíntese realizada pelas primeiras formas de vida, o que possibilitou o surgimento de seres mais complexos, maiores e multicelulares, que darão origem aos primeiros animais e plantas; o mundo vive uma intensa glaciação que o cobre completamente em gelo.
Entre novembro e dezembro, com o aumento das temperaturas, o gelo dá lugar ao supercontinente Pangeia e o oceano Pantalassa, permitindo que pela primeira vez a vida possa florescer e se diversificar. O episódio é conhecido pela ciência como Explosão Cambriana, e possibilitou o surgimento de variadas formas de animais e plantas na água, que eras mais tarde migrariam para a terra. O triunfo da vida no planeta se estabeleceu sob uma linha tênue e, por várias vezes ao longo da história, chegou próxima de sucumbir a adversidades que a natureza oferecia.
“A Terra é uma somatória de fatores geológicos e biológicos que a tornam um local fascinante. Mas temos que entender que esses recursos não são ilimitados”
“O mundo biológico está cimentado no mundo geológico”, declara o professor Elvio Pinto Bosetti, coordenador do Palaios, em referência ao biólogo britânico Julian Huxley, para explicar os segredos sobre a vida na Terra, escondidos abaixo dela. No Laboratório de Paleontologia da UEPG, os estudantes do grupo Palaios treinam seus olhares para encontrar, em meio a centenas de fragmentos de rochas, indícios de formas de vida que se preservaram com o tempo. “Aqui aprendemos a ler o grande livro das rochas”, exalta o coordenador.
Bosetti ressalta que um dos grandes desafios para a paleontologia é compreender as histórias sobre a Terra que não ficam gravadas na rocha. “Por que um cientista se dedica a estudar os fósseis de baratas que viveram em meio aos dinossauros? Porque elas também nos ajudam a entender o mundo naquele período e sua extinção pode apontar para as transformações que o planeta passou e irá passar”, indaga o professor.
Durante o período Paleozoico, a Terra passou por três episódios de extinção em massa, sendo a mais letal a do período Permiano, que eliminou 98% das formas de vida. O episódio é mencionado pela ciência como A Grande Morte. Da destruição causada por este período, erguem-se os dinossauros, que durante milhões de anos, reinaram absolutos, em um mundo agora divido em dois continentes pelas atividades tectônicas, Laurásia e Gowduana. Mais uma vez, o fim de uma era geológica é marcada pela morte, com a extinção dos grandes répteis, há cerca de 65 milhões de anos.
O último convidado chega
Já no final do ano, entre Natal e o Ano Novo, tem início o período Cenozoico, época em que as formas de vida que outrora viveram sob a sombra dos dinossauros emergiram, dando origem a uma grande variedade de mamíferos e aves, a megafauna. O planeta passa por um ciclo de glaciações, as Américas se unem, a Cordilheira dos Andes se eleva e a floresta amazônica floresce. O mundo então se torna mais próximo do que ele é hoje. No dia 31 de dezembro, faltando apenas uma hora para o fim do ano, surge um novo convidado à festa.
Vinda diretamente da África e distribuído por todos os continentes, esta criatura se destaca pela postura bípede, que facilita a locomoção e o manuseio de ferramentas; e o grande crânio que lhe dá vantagem intelectual sobre seus predadores e presas. Com apenas 300 mil anos de história, Homo sapiens sapiens, o ser humano moderno, não apenas desenvolveu formas de sobreviver a um mundo em constante transformação, mas aprendeu a ser ele um agente capaz de transformá-lo.
Na entrada do Museu de Ciências Naturais, os visitantes são recebidos por réplicas de crânios, com diferentes formas e tamanhos; todos se assemelham ao crânio humano, mas apresentam peculiaridades. Cada uma conta a história de diferentes membros da família dos hominídeos, a linhagem que dá origem à nossa espécie. O arqueólogo Moacir Santos, criador das réplicas, pega cuidadosamente um pequeno crânio, aparentemente partido ao meio – trata-se de Sahelanthropus tchadensis, o nosso ancestral mais antigo conhecido, com mais de sete milhões de anos.
” O que me move é tentar entender as diferentes experiências humanas na Terra e como cada povo e civilização buscou compreender seu lugar no planeta”
“Quando olhamos para as diferentes espécies, vemos que com o passar do tempo, os crânios ficam maiores, o que aponta para cérebros maiores. Essa característica está ligada à nossa necessidade de conhecer o mundo e inventar coisas; isso permitiu nossa espécie dominar todos os ambientes do planeta”, exalta o arqueólogo. Ele alerta que as mesmas características que permitiram o Homo sapiens dominar o planeta o colocam em risco. “Nós sempre acreditamos que nossa espécie aprendeu a ter o controle sobre a natureza. O que precisamos é compreender que na verdade somos parte dela”, alerta.
Texto: Gabriel Miguel | Fotos: Gabriel Miguel, Aline Jasper e Jéssica Natal