O ator Matheus Nachergaele encerrou a 47ª edição do Festival Nacional de Teatro da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Na noite de domingo (27), o ator lotou o teatro Ópera com o espetáculo “Processo de Conscerto do Desejo”. Matheus, reconhecido por trabalhos no cinema, teatro e televisão, levou o público ao riso, às lágrimas, a cantar e a dançar em “prece pagã” – como ele mesmo diz. Conheça, num relato em primeira pessoa, o processo de criação da peça poética, musical e autobiográfica que ele encena há 4 anos pelos palcos do Brasil.
A minha mãe Maria Cecília faleceu quando eu tinha três meses de idade. Ela se matou. Cometeu esta grande traição comigo. Eu sei que minha mãe me olhou nos olhos. Eu sei que ela me amou e isso foi definitivo em mim. Recebi de presente várias mães para me cuidar depois de sua morte, mas sou muito ligado a ela.
Maria Cecília morreu de maneira trágica e eu, por muitos anos, não soube como ela tinha partido porque é um tabu. É difícil contar para uma criança uma coisa assim.
A pasta azul
Aos 16 anos, meu pai me chamou para um fim de semana inesquecível, trágico e, ao mesmo tempo, um bálsamo. Na casa da praia, ele me entregou uma pasta azul com trinta poemas de minha mãe, que morreu aos 22 anos. Ele me disse “esses são os poemas de sua mãe, que guardei para você até hoje. Quero te contar que ela se matou, não foi uma morte natural como contamos a você”. Ele chorou muito e me deu os poemas.
A partir daí, passo a ser quem eu sou hoje. Entendo de onde eu vim e a tragédia que me marcou. Passo a procurar um sentido de embelezamento a isso tudo. Vou para as artes para tentar descobrir a vida de uma maneira muito sensível. Passei a ser um leitor ávido de poesia.
1968
Minha mãe amava tocar violão. Tinha um gosto musical impecável. Apesar de ter nascido numa quatrocentona família paulista, ela gostava mesmo era de artista, de música, de jazz. Era uma pessoa curiosa por saber o que poderia ter sido viver outra vida. Escrevia muito bem. Encontrei na biblioteca dela muitos livros maravilhosos. Então, minha mãe sem saber me guiou muito na minha formação. Tinha toda a obra de Moliére, Shakespeare, Elia Kazan, Simone de Beauvoir. Ela era uma mulher inteligente e ligada, que não aguentou os anos de chumbo. Morreu em 1968. Deixou esta obra que eu guardei durante muito tempo no coração.
A exemplo do que digo no início, a peça é sobre “dar luz ao que era escuro, embelezar o que era feio e dar voz a tudo que se calou, sair das sombras e dançar sob esta luz que cega a gente”.
Eu demorei para fazer o “Processo do Conscerto do Desejo”. Eu não sabia como montar a peça. Muitas vezes, pensei em apenas editar um livro, o que fiz depois da peça estreada. Coloquei o nome do livro “A Mariposa”, título inspirado num dos poemas que acho bonito de Maria Cecília. Todos os poemas que ela escreveu estão na peça. Não teve tempo de fazer uma obra tão vasta.
Os poemas tratam de temas cotidianos da vida material e imaterial de uma jovem mulher: o amor, a separação, o apaixonamento, a vaidade, a dor, a vontade de morrer, a saudade dos antepassados. São poemas irônicos, divertidos, por vezes, tristonhos.
Através dos poemas pude entender o que aconteceu com a mamãe. Os poemas me deixam entrever a alma da minha mãe e saber até que ponto ela poderia ficar triste e entender que também era uma mulher muito inteligente. Há que se respeitar de alguma maneira, a sua decisão. Mas, claro, eu daria minha vida para evitar que ela tivesse partido.
Eu sou minha mãe viva durante esta peça. Eu não queria fazer do espetáculo um lamento neurótico. Eu queria deixar o material mais tristonho, mais queixoso, mais neurótico na análise. Eu sou um bom ator e gosto do teatro que é uma cerimônia laica, pagã, do livre pensamento. Queria celebrar a minha mãe quando eu fizesse a peça.
Frio na barriga
Quando eu era mais jovem tinha menos capacitação técnica para enfrentar este texto sem me misturar de uma maneira doentia ao que eu estava falando. Toda vez que faço este espetáculo (e já foram muitas sessões) alguma coisa me morde, uma palavra que ainda não tinha percebido ou uma ideia contida num poema irônico. Às vezes eu digo “oh mãe, que lindo isso”. Eu me emociono muitas vezes, mas o que importa é que o público se emocione e faça uma catarse.
Sempre é um frio na barriga fazer a peça. Sempre é um “nossa!”. Não tem como dar esta entrevista e não lembrar do meu pai me enregando a pasta azul. Eu sou ainda o menino, o homem, com a pasta azul.
A vocação do ator surge de uma certa negação dos dramas cotidianos, de um certo espanto inteligente diante disso e do desejo de celebrar esta descoberta como uma cerimônia pagã dentro de seu corpo. O ator é alguém que prefere estar no tablado que na vida comum como ela se apresenta para todas as outras pessoas. O ofício do ator é um chamamento religioso, um desejo de fazer das tristezas e alegrias cerimônia. É negar a vida comum, por trauma, por medo, ou observação aguda da pequenez da vida e tentar transformar isso em algo bonito. A sociedade acaba utilizando isso a seu favor. Os atores são os “cordeiros de Deus, que tiram os pecados do mundo”.
Eu digo aos iniciantes que o teatro não deve ser encarado como uma plataforma para depois ir para a televisão. “Encare o Teatro como um objetivo lindo de amplificação das suas virtudes como ser humano, do seu entendimento do que é a vida humana, do seu entendimento do outro e de si mesmo. Se você respeitar o tablado do teatro assim, pode ser que aconteçam coisas como o sucesso na tv”.
Cada vocação é feita para o bem de todos porque nada é seu definitivamente. Tudo é de todos.
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Fotos: Luciane Navarro, Daphynny Pamplona e Maykon Lammerhirt. O texto é de Luciane Navarro, criado com trechos de entrevistas concedidas às jornalistas Bruna Bronoski, Luciane Navarro e Marelli Martins, no sábado, 26 de outubro.