Alvira e Valquiria: uma história com tempero de mãe

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Perto das 9 horas da manhã, a Alvira entra no Restaurante Universitário. Dona da casa, olhando para os lados, vai passando a mão numa mesa, depois noutra. Baixa três banquinhos, e vai logo convidando: “vamos sentar aqui”.

A filha Valquiria senta ao lado e elas dão as mãos. A prosa começa com um desabafo: “agorinha, quando estávamos chegando, eu disse ali fora pra minha menina que já faz um ano, mas parece que estive aqui ontem. É triste ver o RU quieto, empoeirado. Aqui é sempre tudo limpinho, cheio de vida, de alegria”.

A conversa foi na sexta, 07 de maio de 2021, mas a memória da Alvira voltou lá no ano de 2002, quando a irmã, a mãe e uma sobrinha vieram de Maringá para que todas passassem o domingo das mães em família. “Ah, veja a coincidência, o resultado do concurso pra assistente de cozinha saiu no dia seguinte”. Então, nesta segunda-feira (10), a história da Alvira com a UEPG completa 19 anos.

Ela pisou pela primeira vez no campus Uvaranas para conferir a lista de aprovados, fixada na parede do Colégio Agrícola, onde fica o restaurante da Universidade Estadual de Ponta Grossa. “Naquela época era assim, tinha que vir aqui”. Alvira sabia que tinha ido bem na prova, mas, ainda descrente, começou a ler o edital de baixo pra cima. “Ai, eu não achava meu nome. Fui subindo com o dedo, linha por linha, e não achava. Olhei pro lado e disse: não deu!”. A irmã, que a acompanhou, retrucou: “Mas, também, você é boba, se começasse de cima. Olha aqui o primeiro lugar”. E, realmente, no topo do edital, ao lado do número 01, estava o nome Alvira Martins Nanuncio. 

A ideia do concurso veio da filha, Valquiria Martins Nanuncio, hoje técnica de laboratório no curso de Zootecnia da UEPG. Na época, ela ainda era estudante do curso de Biologia. “Um dia, eu estava vindo almoçar aqui no RU e vi o edital ali do ladinho. Pensei logo na mãe”.

A família do norte do Paraná veio de Jandaia do Sul para Ponta Grossa tentar a vida. Alvira lembra que eram tempos difíceis. “Quando peguei o edital, vi que tinha vaga para bibliotecária, que exigia seis meses de experiência, e eu não tinha! Mas para assistente de cozinha, pensei: pra essa vaga eu tenho como comprovar. Fiz a inscrição”.

Valquiria acompanhou a preparação da mãe para a prova. “Ela estudou muito”, disse a filha. A mãe emendou: “Estudei sozinha porque a Valquiria tinha as atividades do curso dela pra fazer. Estudei tanto que perigava eu saber onde estava cada ponto e cada vírgula nas apostilas”, gargalhou.  

Depois da alegria da aprovação, veio o desespero. A família não tinha dinheiro para os exames admissionais complementares. “Faço questão de dizer, de contar, que nessa hora quem me socorreu mesmo foi o meu cunhado, que é médico. Hoje ele está aposentado, mas na época estava na ativa e conseguiu tudo pra mim, com amigos. Devo muito a ele a minha entrada aqui na UEPG. Pode colocar isso lá no texto”. 

Amor pelo RU

Desde que foi admitida, em 6 de junho de 2002, Alvira trabalha no RU. Começou como assistente de cozinha e, em 2009, quando fez um concurso interno, passou à cozinheira.

Com as mãos espalmadas no peito, sobre a blusinha de um verde muito alegre, olha para refeitório e solta: “ah, entrar na UEPG foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Eu amo, amo, trabalhar aqui. Não me vejo em outro lugar”. As frases apressadas passaram por uma prova de fogo quando, mesmo com dores crônicas resultantes de um grave choque elétrico, Alvira não aceitou trabalhar em outro local.

Preocupada com  a saúde de Alvira, a família insistiu muito que ela saísse do RU, mas não teve jeito. Nesse momento da entrevista, Valquiria pega a mão da mãe e diz: “A gente aceitou porque ela quer estar aqui”. A mãe sobrepõe a outra mão e confirma: “Eu chorei. Chorei muito, muito mesmo. Não queria sair daqui de jeito nenhum. É minha casa. Fiquei!”, sorri.

A solução para a permanência no RU, sem agravamento da sua condição física, foi mantê-la no restaurante, mas em outras atividades: no café da madrugada, no escritório, na lavanderia e recepção dos tickets na entrada, que ela adora porque recebe e vê todo mundo que entra no RU.

Mesmo em outras funções, a rotina é pesada. “A gente chega aqui às 5 horas da manhã para fazer café que é servido aos internos do Colégio Agrícola. Os alunos são uns queridos. Eles podem até aprontar, mas não aqui. No RU é só alegria”.

A equipe, família do Restaurante Universitário

Em poucos minutos de prosa, fica evidente que o amor pelo trabalho é o amor pelas pessoas. “Cedinho, em vez de ficarem no refeitório, os alunos vêm tomar café na cozinha. Comem em pé e ficam conversandinho”.

Em maio, a saudade de casa aperta, conta Alvira. “Coitadinhos. Eles moram aqui, ficam longe de casa. São muito carentes. Então, sempre fazem uma homenagem pra nós no dia das mães. Tocam gaita, violão … e tocam o terror também”. A conversa sobre a data é interrompida por risos seguidos de um breve silêncio que diz muito. 

Família na UEPG

Alvira conta que, em 2009, quando Valquiria passou no concurso foi uma alegria só. A ideia de ter a filha por perto era empolgante, mas a espera das duas foi longa. “Em 2010, fiz os exames admissionais e fiquei mais de um ano esperando. Uma agonia. Fui chamada somente em 2011 e, nesse meio tempo, dava aulas na rede estadual”.

Na época, o curso de Zootecnia era na cidade de Castro. Todo dia quando a filha pegava a estrada, o coração da mãe ficava apertado. “Eu saía de casa às 6h30 da manhã. Pegávamos a van no estacionamento da UEPG Centro”. 

Apesar da distância, das indas e vindas diárias, Valquiria gostava muito da proximidade que havia entre os servidores e os estudantes. “O curso ficava no Colégio Agrícola de Castro, um lugar bonito, afastado da cidade. Tinha apenas uma linha de ônibus pela manhã e outra no final de tarde. Então, os alunos almoçavam com a gente porque não tinha refeitório. A copa era pequena, mas abríamos para eles esquentarem o almoço. Ficávamos batendo papo. Era muito bacana”.

Quando o curso de Zootecnia veio para o campus Uvaranas, em 2014, a diferença foi gritante. Valquiria lembra que foi um período difícil por não haver um espaço próprio para o curso.  “O Bloco de Zootecnia estava em construção. Então, eu fui ‘emprestada’ para a graduação de Biologia. Depois voltei e estou até hoje no laboratório, onde o meu trabalho é leve, se comparado ao da mãe”. 

A família UEPG não se restringe às mulheres, tem o João Pedro nessa história, segundo filho de Alvira. Ele cursou Comércio Exterior e, claro, também tem um carinho especial pela Universidade, mas são os primeiros dias de vida dele que vêm à tona no relato da mãe. “Quando ele nasceu, precisou de uma cirurgia de emergência. Eu fiquei com ele em Maringá, longe da Valquiria, que já tinha 12 anos, coitadinha. Foi muito doído ficar longe dela, pra ela e pra mim, mas ficamos mais unidas ainda depois disso”.

A proximidade delas é reforçada pela rotina de trabalho na UEPG. Para Valquiria, a melhor parte de trabalhar no campus (nos tempos antes da pandemia) era almoçar no RU, encontrar a mãe todos os dias e ser, inevitavelmente, mimada pelas outras cozinheiras. “Eu preciso dizer, em alto e bom tom, que eu não quero nem o melhor nem o maior bife do buffet”, ri.

O lado vó

Valquiria é mãe da Júlia, de 3 anos, que desde os primeiros meses de vida começou a frequentar o refeitório do RU e chegou a ser flagrada, toda plena, comendo maçã raspadinha no colo da mamãe.

Quando o assunto Júlia chega, a conversa vira uma agitação só. “Olha só a sapeca no vídeo, pendurada de cabeça pra baixo. Nessa foto está faceira com a bolsinha que vovó fez”, diz Valquiria. “Ei, filha, mostre aquela foto do batizado da Júlia. E tem também aquela do chá de bebê, tão linda”. Enfim, Alvira é uma mãe orgulhosa, avó coruja. Falando das peripécias de Júlia, lembra da infância de Valquiria. “Ela também era assim peralta e me deu muito trabalho, mas era muito estudiosa. Hoje, é uma filha tranquila, que nunca me diz não. Está sempre por perto”. 

Valquiria emenda que quem deu trabalho pra ela foi a dona Alvira. “Sempre fui péssima em matemática. Na verdade, sou até hoje (risos). Eu chegava da escola e (ai meu Deus!) lá estavam folhas e mais folhas de papel com exercícios de matemática. Ela enchia de continhas que eu tinha que fazer. Tinha que fazer”, ri. 

Depois de uma hora de conversa, antes da despedida, pose pra fotos na cozinha. Ela entra explicando o que é cada coisa. “Aqui o trabalho é bem puxado, sabe? Cedinho, esse fogão já está com aqueles panelões em todas as bocas. Nessa panela de pressão é feito o feijão. Enorme, né?”. E assim foi andando e detalhando tim-tim por tim-tim.

Apontando para uma das mesas, Alvira conta que sente saudades e que ela e as companheiras de trabalho faziam as refeições ali, até o dia que o RU fechou por conta da pandemia. Ela puxa um banco.  Mãe e filha sentam juntinhas. “A gente pode tirar a máscara para fazer uma foto igual àquela da minha infância. Eu e a mãe juntinhas?”. Como a câmera permite fazer fotos bem de longe, a resposta é sim. As duas se ajeitam, sorriem e posam e se abraçam. Elas estão muito à vontade uma no abraço da outra, naquele lugar que é também a casa delas, o RU, a UEPG.   

“Mãe, você é e sempre foi meu exemplo de caráter, honestidade, humildade. Sempre tive dificuldade em dizer o quanto te amo, porque o amor entala na garganta e sai pelos olhos. Amo você!” – de Valquiria para Alvira. 

Texto: Luciane Navarro   Fotos: Luciane Navarro;  imagens do arquivo pessoal das entrevistadas; arquivo Colégio Agrícola

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