“A minha voz não fala sozinha. A minha voz grita e ecoa no coletivo. Sou uma mulher indígena e todas as vezes que alguém me ouve, venço também”. Assim Géssica Nunes Guarani Nhandewa começa seu livro ‘Universidade Território Indígena’. Como ela, autores indígenas publicaram seus livros por meio Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), no último mês. A iniciativa do Coletivo de Estudos e Ações Indígenas (Ceai) fez nascer a ‘Coleção Retomadas’, pensada e desenvolvida por indígenas, para impacto dentro e fora do ambiente universitário. O trabalho resultou em seis obras, publicadas de modo impresso e em formato e-book, com vivências, pensamentos, tradições e reivindicações indígenas.
Géssica é mãe, professora, pesquisadora, curadora de Literatura Indígena e especialista em Gestão Escolar Indígena. “Por muito tempo, pensei em ressignificar a minha vivência, minha experiência, a minha realidade”, conta. Por meio do seu livro, a autora reafirma sua identidade indígena, a partir de vivências próprias. “O meu processo de produção do livro foi a ideia de escrever cada dia, ou em datas alternadas, os textos sobre a minha experiência como acadêmica indígena, a partir de 2019, quando eu estava vivendo silenciamentos na universidade – pouco, mas estava”, relata.
A Universidade é também lugar dos povos indígenas. “Luto pela atuação das vozes de mulheres indígenas no combate ao racismo que nos exclui do espaço acadêmico. Quero transformar todas essas práticas educacionais e humanas, com e para o ser humano, a partir da história do meu povo”, informa. A vontade por afirmar suas experiências e combater preconceitos, fez nascer um livro de mais de 150 páginas. “Ter um livro lançado com a minha voz, a ecoar num som coletivo, é saber que a minha luta não é em vão, que num futuro bem próximo teremos uma experiência menos dolorosa ao acessar o espaço acadêmico”, completa.
Iniciativa
Os saberes e práticas dos povos indígenas foram postos como prioridade no trabalho do Ceai. “Pensamos sempre na melhor forma de contribuir, para que pessoas possam ter mais visibilidade, possam ter os seus saberes considerados valorizados, inclusive dentro da da Universidade”. Todo o trabalho de curadoria, edição, ilustração e revisão foi feito por pessoas indígenas. “Todos eles contribuíram muito para o produto final de cada um dos livros”, enfatiza Letícia.
Das experiências pessoas para os livros
Florencio Rekayg Fernandes resgatou uma tradição aprendida na infância, do povo Kaingang, para seu livro. Na obra ‘O Ritual dos Mortos’, o autor conta o que era feito quando falecia um indígena adulto. “As crianças ficavam fechadas em um outro local, para não ficarem próximas das pessoas falecidas. O chão era todo coberto com folhas de ervas medicinais e as pessoas só podiam andar sobre as folhas, para não morrerem tão cedo”, descreve. O corpo não podia permanecer muito tempo no local e deveria ser retirado assim que o dia clareasse – os falecidos não eram enterrados, mas sim colocados próximos a troncos de árvores secos e cobertos com folhas e galhos.
“Na verdade, eu já tinha escrito esta história fazia mais de 10 anos, só que eu nunca tinha parado para analisar a possibilidade de transformar os textos em livro”, conta Florencio. Quando conseguiu organizar os escritos, o livro ganhou idiomas kaingang, português, guarani, espanhol, francês e inglês. “Esse lançamento demonstra o reconhecimento e a valorização dos escritores indígenas, mostra nossa resistência, luta e a manutenção da nossa cultura”. Para ele, as obras da Coleção irão impactar as próximas gerações e a comunidade acadêmica. “Agradeço à UEPG e a todas as pessoas que tiveram uma participação de grande importância para que saísse o produto final”.
A Covid-19 também impactou profundamente as comunidades indígenas. Era 2020 quando Olívio Jekupé foi infectado pelo vírus. “Fiquei internado dentro da aldeia, lá em São Paulo, pois foi feito um hospital de emergência para nós, mas me curei rapidinho, porque a gente usou nossas ervas medicinais”, conta. Durante o período de quarentena que cumpriu após o internamento, Olívio começou a escrever. Juntamente com Jovina Renh Ga, a dupla deu vida à obra ‘Coronavírus nas Aldeias’. Logo depois, veio o contato com a UEPG para a publicação do livro. “Sou escritor há muito anos e fico muito feliz com o lançamento destas obras, pois quanto mais elas ficam conhecidas, mais espaços se abrem para nós”, comemora Olívio.
É necessário que mais escritores indígenas sejam publicados, segundo ele. “É uma forma das pessoas conhecerem como que é o dia a dia de um povo, ter conhecimento da nossa cultura. A gente precisa que mais livros de autores indígenas sejam publicados, pois é um ganho tanto para estudantes universitários, quanto para escolas lerem nossas obras”, avalia.
Distribuição
O objetivo de Olívio será cumprido. A Coleção terá sua tiragem impressa, que será distribuída em escolas indígenas. Para quem tem acesso a internet, a Coleção Retomadas está disponível em formato online. “Vamos distribuir [os livros], principalmente, em escolas indígenas, porque a obra impressa chega em qualquer lugar, ele não precisa do sinal de internet, que é coisa que muitas escolas indígenas não tem escolas periféricas não têm”, destaca a professora Letícia. A coletânea de livros irá auxiliar a suprir a falta de material sobre cultura indígena que existe no Brasil. Para Letícia, distribuir uma tiragem de livros impressos irá fazer a diferença para essas crianças, adolescentes e escolas. A edição foi cuidadosa em não apagar a forma de expressão indígena, tanto nos textos, quanto nas ilustrações e identidade visual. “Os indígena sabem se expressar e têm muito a dizer e a gente tem muito o que aprender com eles”, completa.
“Acredito que, para mim e para muitas de nós, o processo de escrita foi intenso e às vezes doloroso”, avalia Arlete Pinheiro Schubert Tupinambá, autora do livro ‘Wayrakuna: Polinizando a Vida e Semeando o Bem Viver’. Para ela, escrever o livro demandou retomar dimensões da vida que, repetidas vezes, foi obrigada a silenciar. “Fazer o papel de falar requer movimentos, ora silenciosos, ora lacrimosos, mas também muita escuta e interação com pessoas e coletivos que estão nesse caminho de retomada de seu pertencimento, de suas ancestralidades”, afirma.
A obra escrita por Arlete trata de um testemunho daquilo que se manifesta na esfera ancestral. “Wyarakuna somos nós, indígenas mulheres, que tomamos posição política e cotidiana em relação a parâmetros que nos são continuamente impostos”. Uma escrita também é testemunho do tempo. “É como reviver as experiências de silenciamentos e dores, mas conseguir viver e escrever sobre nossas retomadas é libertador, um descobrir-se sobre quem somos nós”, pondera a escritora. Publicar o livro foi como poder se exprimir com liberdade junto com os demais autores. “Esta publicação nos conecta com outros que estão nesse mesmo movimento de declarar a sua existência publicamente. É como dizer uns aos outros que não estamos sozinhos. Somos agradecidas por essa abertura compartilhada com o nosso movimento”, completa.
Estética
A ancestralidade indígena está presente em cada página dos livros – até nas ilustrações e concepção artística. Álvaro Franco da Fonseca Junior foi o responsável pelas ilustrações das capas e do interior das obras. Além da experiência em trabalhar com alunos indígenas, o artista recapitulou pontos da própria ancestralidade, vivenciada com a mãe. A primeira pesquisa para a coleção começou na terra indígena de Mangueirinha. “Passamos a pesquisar como era a concepção de arte no sentido da ilustração, para que o que nós fizéssemos não ficasse distante de algo que poderia ter sido feito por eles mesmos”. A partir daí, começaram os desenhos que seriam parte das obras.
O que foi feito é fruto de pura inspiração, segundo Álvaro. “Trabalhamos com muita bagagem técnica e cultural, um trabalho feito trabalho a partir de histórias e referências de outros artistas indígenas, com técnicas de cores, significados e grafismos”, finaliza. Na diagramação, Carlos Bauer conta que toda a concepção estética foi construída para expressar a origem indígena dos autores sem cair em estereótipos. “Criamos recursos que permitam identificar os livros como parte de uma coleção e ainda realizei uma pesquisa de publicações recentes de autores indígenas para compreender as diferentes linguagens visuais em utilização”, explica.
Uma vez que a coleção engloba livros em gêneros e formatos variados, a tipografia se mostrou um recurso forte para criar unidade entre os livros, segundo Carlos. “A fonte geométrica de títulos é utilizada em todas as capas, lombadas e interior do livros. Isso cria um reconhecimento muito forte e cada um dos livros tem internamente uma padronagem, que faz sentido para o autor, para o seu povo ou para o assunto”, finaliza.
Interessados em adquirir os livros em formato online podem solicitar via Instagram do Ceai, aqui.
Texto e fotos: Jéssica Natal