Crítica do Fenata: Há tempo para tudo

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Os alunos do curso de Letras da UEPG estão preparando textos de crítica sobre os espetáculos da 47ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata). As críticas são orientadas e revisadas pela professora Paola Scheifer. Sobre a peça “Para Contar Estrelas”, participante da Mostra Infantil e grande vencedora do Fenata, leia a crítica:


Há tempo para tudo

Assistir a uma peça infantil é sempre um convite de retorno à infância, com todos os seus encantos e magia. Assim foi estar na plateia do espetáculo “Para contar estrelas”, do grupo Cirandela, dirigido por Reveraldo Joaquim e Yonara Marques, de Criciúma (SC).

Ao apagarem-se as luzes, o ambiente foi invadido por um barulho perturbador do que parecia ser uma mistura de despertador, com badaladas de um antigo relógio Cuco. Surgem, então, em meio à plateia, dois atores, Bruno Andrade e Priscila Schaucoski, que, coreografando passos ritmados pela trilha sonora, começam a interagir com um pedestal todo envolto por partes de instrumentos musicais. Em seu topo, muitos relógios, ecoando um frenético tic-tac. 

No desenrolar da peça, reconhecemos que os dois personagens são operadores de uma máquina do tempo, que os transporta para o lugar onde tudo pode acontecer: o palco. Prócion, um dos guardiões do tempo, inicia o que ele chama de “reconhecimento de área”, utilizando-se de um aparelho identificador de energia. Trata-se do lançamento de um sino dos ventos, preso a uma vara de pesca, acima da cabeça do público.  O susto provocado pela cena desestabiliza a confortável posição do espectador que se entrega aos encantos do som ressonante do metal. É o início de toda a magia que seria o espetáculo apresentado pela trupe catarinense.

A recorrente interação com o público continua com um cumprimento, “Oi”, e com a apresentação de seus nomes: “Eu sou Kuiper, eu sou Prócion. Somos os guardadores de tempo!”. Todos os movimentos dos atores são cuidadosamente coreografados ao som de uma trilha sonora perfeitamente harmoniosa a cada um deles. Os atores operam, também, magnificamente os elementos que compõem o cenário, como um amontoado de quinquilharias, pedaços de instrumentos musicais e peças de metal. Meticulosamente arranjados, esses elementos formam uma composição pitoresca que só pode ser compreendia à medida que os atores colocam as “máquinas” para funcionar. 

É com ar de encantamento que os dois personagens cantam e encaixam duas manivelas, cada uma em um caixote de madeira. Ao serem giradas, exibem lupas enormes suspensas por molas, que permitem às personagens observarem a plateia e o tempo.

Por meio das lentes de aumento, que geram risos entre os espectadores ao verem os olhos esbugalhados dos personagens aventureiros, é possível observar o tempo de Pedrinho e o tempo de Maria, sua mãe. O dele é tempo livre, bom, bonito e macio, perfeito para ser capturado e encapsulado na máquina do tempo; o dela é escasso, regulado, sem sobras para que seja guardado. O paradoxo do tempo livre e regulado é colocado em cena, representado, de um lado, pela liberdade que toda e qualquer criança deveria experimentar; de outro, pelo engendramento constante de ações às quais os adultos geralmente se submetem. 

A interação espetáculo e público continua quando uma criança da plateia é convidada a subir ao palco e se fazer, também, ator, à medida que, paramentado, embarca em uma grande aventura com os demais personagens, tornando-se Alexandre de La Mancha, o herói que montado em um cavalo imaginário viaja até a floresta dos temidos moinhos de vento. Além do destaque à interação, convém ressaltar a referência ao clássico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, que se atualiza por meio da peça no imaginário infantil.

A reflexão feita pelos personagens sobre o tempo vivido com o pequeno Alexandre se configura em um dos momentos mais bonitos do espetáculo, promovendo o silêncio em cena e na plateia, elemento necessário ao exercício reflexivo. Um instante meditativo, quebrado pelo som massacrante do relógio. Alguns questionamentos são, então, levantados: como o relógio é capaz de regular tudo? Regula até mesmo o tempo de ser feliz? O tempo de ser feliz é aquele marcado no calendário como sextas-feiras? Férias? Feriados? É possível parar o tempo?

Diante de tais questionamentos, em um ato de rebeldia à imposição do relógio, os aventureiros decidem, então, guardar seus relógios em uma caixa e abrir as cápsulas que guardam o tempo de criança, possibilitando que a magia da infância tome conta da cena e, por instantes, do coração de cada um dos presentes, que deixam os risos correrem soltos. 

A participação e a reação do público nesse espetáculo é marcante, ficando difícil separar realidade e fantasia, afinal, no palco ou na plateia, somos todos crianças compartilhando da mesma brincadeira que o tempo da cena nos possibilita viver. O envolvimento das crianças com a peça é notório. Quando, por exemplo, o fole de uma gaita se transforma nas mãos dos atores em algo mágico e intrigante, ouvimos uma criança da plateia em alto e bom tom perguntar: “O que é isso?”.

As bolas de sabão invadem, ao som de uma canção, o palco de leveza e alegria, representando a destituição das personagens às amarras do tempo. A fantasia do mundo infantil se materializa em arte no palco do 47º FENATA, mas o espetáculo ganha desdobramentos que vão além do espaço cênico. Pensar sobre o tempo e sobre o modo como lidamos com ele é um prolongamento da peça que nos acompanha mesmo após deixarmos o teatro, afinal, sempre “é tempo de contar estrelas”.

Texto: Samuel Sandrino, graduanda do 3º ano do curso de Letras Português/Inglês da Universidade Estadual de Ponta Grossa

Foto: Douglas Kahl


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