Crítica do Fenata: O lugar de cada um é onde o coração está!

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Os alunos do curso de Letras da UEPG estão preparando textos de crítica sobre os espetáculos da 47ª edição do Festival Nacional de Teatro (Fenata). As críticas são orientadas e revisadas pela professora Paola Scheifer. Sobre a peça “Ói lá Inezita”, participante da Mostra Infantil na tarde de quinta (24), leia a crítica:


O lugar de cada um é onde o coração está!

O espetáculo Ói lá, Inezita é uma homenagem à trajetória da grande dama da música caipira brasileira, Inezita Barroso, produzido pela Cia. Cênica de São José do Rio Preto (SP) e voltado para o público infantil. Criada em 2007, a Cia. busca levar ao público espetáculos que enalteçam personagens e elementos populares, regionais e locais, utilizando a música como elemento cênico diferencial.

A peça integrou a Mostra Infantil do 47º FENATA e devido ao trabalho magistral da Cia. Cênica foi sucesso absoluto junto ao público presente, formado por alunos de escolas públicas de Ponta Grossa que lotaram o Cine Teatro Pax para prestigiar a encenação. A maior evidência de aprovação foi que, apesar de a artista homenageada e as canções que compõem o espetáculo serem, em geral, desconhecidas do público infantil, os espectadores mantiveram-se atentos do início ao fim do espetáculo e, na sequência, interagiram com os atores, fazendo a eles perguntas instigantes sobre a montagem da peça, sobre os profissionais que atuaram nela e, principalmente, sobre a trajetória de Inezita.

O primeiro aspecto da produção a ser exaltado é a iniciativa de compor uma narrativa lúdica encenada em um ambiente que favorece o exercício imaginativo como instrumento para apresentar às crianças um ícone da música brasileira. O espaço cênico – que representa uma cena típica do interior do Brasil – se remete ao cenário do Programa Viola, minha viola, veiculado pela TV Cultura durante mais de três décadas e apresentado por Inezita Barroso até 2015, ano de sua morte.

A disposição dos elementos no palco propicia um ambiente no qual o público sente-se imerso do início ao fim da peça: a atmosfera do sertão, palco da cultura caipira defendida e propagada de forma ativa por Inezita durante toda a sua vida e trajetória profissional. A ambientação é complementada pela presença de músicas que são executadas ao vivo pelos atores em instrumentos musicais responsáveis também por toda a sonoplastia do espetáculo.

Como não poderia deixar de ser, a peça é extremamente musical e a narrativa é acompanhada por trechos de mais de vinte canções caipiras e populares, imortalizadas na voz de Inezita Barroso, como João-de-barro, Peixe-vivo, Cuitelinho e Lampião de Gás. As músicas tocadas na viola ocupam o centro do espetáculo, lugar que também ocuparam na vida de Inezita. Os atores são também cantores exímios e fazem com que os espectadores sintam-se envoltos durante toda a encenação por uma atmosfera ímpar de música, dança e poesia.

O espetáculo inicia com a chegada de um grupo de Folia de Reis que surge no teatro bem próximo à plateia e segue até o palco cantando, dançando e tocando instrumentos musicais, que se configuram em componentes de grande importância para a encenação. O grupo pede licença à “madinha” Inezita para entrar, pedido que é aceito de imediato pela personagem, ao anunciar ser devota de Reis.

Fica claro que o pedido de licença a Inezita para subir ao palco é um pedido que igualmente se estende ao público, pois a partir de então os espectadores sentem-se transportados para o universo da cultura caipira brasileira. A atmosfera vai sendo delineada também por meio dos causos narrados e cantados, pelo figurino e representação das variantes linguísticas regionais dos personagens.

Ao longo do espetáculo, a personagem Inezita é encarregada de cumprir uma missão de encantamento composta por diversas tarefas. A encenação de sua trajetória coloca o público em contato com situações em que a mulher é desvalorizada e desacreditada. Em cada uma delas a personagem contesta e enfrenta os padrões estabelecidos, reafirmando a força e a coragem da mulher, bem como a necessidade de acreditar em si.

O espetáculo é uma verdadeira reverência à figura de Inezita Barroso e a tudo que essa grande artista representa na defesa da cultura regional. O discurso da peça enaltece a mulher que luta diariamente contra a cultura machista e patriarcal, afirmando-se como artista popular. A encenação problematiza verdades e preconceitos – principalmente associados às mulheres – por meio da figura de Inezita Barroso que para vivenciar sua grande paixão pela música e pela viola enfrentou um universo tipicamente dominado por homens.

Acima de tudo, o conjunto de manifestações apresentadas em Ói lá, Inezita transmite o sentimento de urgência da valorização do patrimônio cultural brasileiro. Ao enfocar tradições belas e ricas de nosso país, como a Folia de Reis e o Bumba meu Boi, e salientar elementos da cultura, folclore e sabedoria populares, a peça se destaca por apresentar a riqueza do nosso legado cultural.

Uma das grandes sacadas da produção é a representação simultânea de três momentos da vida de Inezita: criança, jovem e madura. As três personagens são representadas por atrizes diferentes, mas por estarem enredadas em uma mesma trama, enfrentam as adversidades da missão que têm a cumprir como se fossem uma só. O efeito causado no espectador por essa tripla performance é a percepção de diferentes pontos de vista – do mais inocente ao mais maduro – sobre as situações representadas. O que une as três personagens, no entanto, é que todas elas deixam transparecer a força e personalidade dominantes, características de Inezita Barroso, que nunca se permitiu ser limitada ou delimitada, nem como mulher, nem como artista.

A encenação simultânea das três Inezitas e o entrecruzamento de suas percepções induz o espectador a refletir: afinal, não somos todos nós um complexo enredamento entre quem somos e quem já fomos? E, no limite, esse não é o principal motivo para valorizarmos nossa herança cultural?

Ao final, em um gesto simbólico e emocionante, as três Inezitas despedem-se do público cantando juntas um trecho da canção Guacira: “Eu vou-me embora/Mas eu volto qualquer dia”. Em um movimento extremamente belo, Inezita criança pendura a viola que é alçada até a lua – elemento cênico fundamental na composição do ambiente do sertão. A harmonia e poesia dessa cena encerram com maestria o belíssimo tributo à trajetória de Inezita Barroso, aguçando no espectador, por meio do elemento lua, a ideia de que desde a infância até a passagem para outro plano, estaria ele, possivelmente, cantando e encantando com sua música.

O grupo da Folia de Reis, que ao início do espetáculo pede licença à “madinha” Inezita para entrar, retorna ao protagonismo e despede-se do público em clima de festa. Apesar de o espetáculo Ói lá, Inezita! ter sido selecionado para integrar a Mostra infantil do 47º FENATA, não há dúvidas de que a peça não deve ser prestigiada somente pelo público infantil, mas também por todos aqueles que recordam com saudade de Inezita Barroso e reconhecem a relevância de sua atuação artística na defesa e propagação da cultura caipira.

Todos deveriam ter a oportunidade de apreciar essa justa e extremamente bem executada homenagem que valoriza as raízes culturais, a força e a coragem de lutar por aquilo em que se acredita, pois conforme entoado pelos atores no início do espetáculo: “O lugar de cada um é onde o coração está!”.

Texto: Aline Cezar Schwab, graduanda do 4º ano do curso de Letras Português/Espanhol da Universidade Estadual de Ponta Grossa

Foto: Aline Jasper


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