Nos Hospitais da UEPG, no último ano, foram 24 famílias que, mesmo em um momento de dor, disseram sim à doação de órgãos. Essas doações significaram novas chances: 82 órgãos e tecidos que tiveram como destino salvar vidas de pessoas que aguardavam na fila de espera por transplantes. Cada doador é representado por uma folha da Árvore da Vida, em formato de estrela, com corações que representam cada órgão doado. Eles se uniram a centenas de estrelas na árvore do HU, que fica no saguão do Hospital em exposição permanente. A cerimônia é realizada desde 2017, sob a organização da Comissão Intrahospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos (Cihdott).
Em uma cerimônia emocionante, um familiar de cada doador é chamado para pendurar as estrelas e corações na Árvore da Vida. A base da árvore tem três raízes, representando o doador, o paciente que recebeu a doação e a equipe hospitalar multiprofissional que realiza o processo de intermediação dessa relação. A voz tranquila e o violão do músico Lucas Alem, que participou voluntariamente do evento em todas suas edições, permeia toda a homenagem.
“É um momento de grande sensibilidade, porque as famílias delas revivem todo o processo da dor, da perda, mas é o momento em que a gente celebra a vida nova que surgiu a partir da doação”, relata a diretora geral dos HUs, professora Fabiana Postiglione Mansani. “A homenagem é para as famílias que se disponibilizaram com compaixão, com amor, a doar os órgãos, mas também para as equipes envolvidas nessa rede de atendimento. Os profissionais da saúde têm que ser muito fortes para acolher a família, para explicar todo o contexto da doação e o que isso representa”.
Um momento feliz, mas ao mesmo tempo, triste. É assim que Lucimara de Castro, irmã de um dos doadores, define a manhã de hoje. “Meu irmão faleceu no mês de abril e está fazendo cinco meses que minha família disse sim. Agora mesmo fiquei sabendo que cinco pessoas foram salvas. Cinco, cinco vidas”. Ela se sente confortada por perceber que tiveram a oportunidade, ao dizer “sim” à doação de órgãos, mesmo em meio ao luto de perder um ente querido, de salvar muitas vidas.
Esse também é o sentimento de Nicolly Cardoso, cujo pai sofreu um acidente de trabalho e também se tornou doador. “Saber que a morte dele deu início a novas vidas, deu oportunidade para essas pessoas, deixou o nosso coração mais quentinho, sabe?”, enfatizou. “A gente foi pra casa com aquela sensação realmente de missão cumprida. A felicidade do outro deixa a gente assim. Tenho certeza que fizemos o certo”.
Para se tornar doador de órgãos, não é preciso nenhum documento ou cadastro oficial: apenas comunicar a vontade à sua família, já que no Brasil, a doação só é realizada após a autorização familiar. “Além da homenagem, nosso principal objetivo com esse evento é conscientizar sobre como é importante conversar com as suas famílias, porque é o ente querido que vai fazer essa autorização, na hora da dor. Então, se isso já estiver claro antes, se eles já souberem o desejo do paciente, fica mais fácil a decisão”, orienta Tatiana Martins, psicóloga do HU-UEPG.
Houve um aumento significativo no número de doadores nos HUs da UEPG, no último ano: de agosto de 2023 a agosto de 2024, foram 24 doadores, número maior que o mesmo período de 2023 (16 doadores); 2022 (14); 2021 e 2020 (23 doadores – o evento foi junto, devido à pandemia de Covid-19); e 2019 (10).
O Brasil possui o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo, mas ainda assim há cerca de 44 mil pessoas aguardando transplantes de órgãos no país. Só no Paraná, são cerca de 2500 pessoas que esperam pelo ato de generosidade de famílias que aceitam a doação de órgãos de entes queridos.
O processo é composto por muitas etapas: desde o momento em que se detecta a possibilidade de morte encefálica em um paciente até a efetivação de um transplante de órgãos, são muitos profissionais envolvidos e uma série de decisões tomadas com responsabilidade e respeito. Morte encefálica é nome legal dado ao óbito de um paciente: é a interrupção irreversível das atividades cerebrais.
De acordo com as orientações da Secretaria de Saúde do Paraná, é preciso que a avaliação da morte encefálica seja feita por dois médicos de diferentes áreas, por meio de um complexo protocolo de exames clínicos e exames complementares. O intuito destes procedimentos é eliminar as dúvidas no processo e comprovar que, realmente, não há mais nenhuma atividade cerebral.
Quando se confirma a morte encefálica, o primeiro passo tomado pela equipe é garantir que haja um entendimento por parte dos familiares do que significa a morte cerebral e uma compreensão da situação. É só depois de garantir o controle emocional que se oferece a possibilidade de ajudar outras pessoas por meio da doação de órgãos. “Fazemos o acompanhamento psicológico desde o primeiro dia do internamento. Geralmente a decisão leva uma semana, duas”, explica a psicóloga, Tatiana. “A família confia muito em nós. Eles sabem que é algo bom e importante, mas têm total direito de escolha”.
Quem pode doar?
Todo paciente de hospital que esteja em morte encefálica é um potencial doador. Segundo a Central Estadual de Transplantes, são contraindicações para a doação de órgãos e tecidos as doenças infectocontagiosas, câncer e infecções graves. No caso de infecções que estejam respondendo a tratamento, é possível doar.
Como explica o diretor acadêmico do HU, Guilherme Arcaro, a Cihdott é uma comissão multidisciplinar que atua diariamente nos casos de pacientes graves na UTI e leitos de emergência, com avaliação da condição neurológica, realização de exames e acompanhamento familiar. “Em caso de suspeita de morte encefálica ou situações de parada cardiorrespiratória, realiza junto com a equipe assistencial do setor exames clínicos e testes diagnósticos para confirmação de morte encefálica e classificação de doador elegível (sem contraindicação para a efetiva doação). Diariamente são avaliados os sinais vitais e exames de sangue para acompanhamento de condições de viabilidade de órgãos para doação”, explica.
Cada doador pode salvar várias vidas: pode-se doar o coração, rins, pâncreas, pulmões, fígado, além de tecidos como córneas, pele, ossos, válvulas cardíacas e tendões. A determinação de quais órgãos podem ser doados é através de uma avaliação clínica de viabilidade.
Hoje, 41 pessoas aguardam por um transplante de coração no Paraná. Até 09 de julho de 2023, o pequeno Nicolas era um dos integrantes dessa curta e perigosa fila.
Aos 10 anos, ele passou mal na escola e precisou ser internado às pressas. “Chegando no hospital, o médico já falou que ele era o caso mais grave da UTI e colocou na fila de urgência de transplante de coração”, conta Jaqueline Santos, mãe do Nicolas. Diagnosticado com miocardiopatia dilatada, uma grave doença cardíaca, ele passou 46 dias internado na UTI Pediátrica do Hospital Universitário Materno-Infantil da UEPG (Humai), outros 21 dias no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, até receber a notícia tão esperada de que havia um doador compatível.
Era 09 de junho de 2023. O rim de Nicolas parou de funcionar e várias medidas de suporte à vida precisaram ser tomadas. “Minha família tinha sido liberada para entrar no hospital devido à gravidade do Nicolas. O medo de perder ele a qualquer momento nos atormentava”. No meio desse turbilhão, uma luz: a notícia de que ele receberia o transplante de coração. “Não consigo descrever em palavras o que senti quando chegou o coração. Foi uma alegria, uma emoção tão grande… Ao mesmo tempo a gente pensa na família que doou, e muita gratidão”.
No total, foram 80 dias de internamento. Agora, Nicolas vai precisar fazer acompanhamento para o resto da vida, faz exames periódicos, toma remédios imunosupressores para não haver rejeição do órgão transplantado. “Mas hoje ele tá levando uma vida normal. Ele tem que tomar certos cuidados, mas alimentação ele está liberado, ele pode brincar, ele voltou pra escola e graças a Deus ele está bem”.
Texto e fotos: Aline Jasper