Há quase 100 anos, a fachada imponente em estilo eclético se destaca no coração da cidade, onde o prédio ocupa indelével sua posição em uma esquina movimentada. Na memória afetiva de tantos ponta-grossenses, o edifício ficou registrado como espaço de cultura e de história. Talvez por isso os olhares que entram no Museu refletem a mágica dos lustres, a grandeza da escadaria, o esplendor dos ornamentos folhados a ouro no teto, a beleza dos ladrilhos e dos pisos de madeira, e também o brilho das memórias.
Cerimônias e histórias
Era 04 de janeiro de 1928. Representantes do Poder Judiciário e personalidades ponta-grossenses participavam de uma grande festa de inauguração do Fórum da Comarca de Ponta Grossa. Antes, o órgão judiciário funcionava na Rua XV de Novembro, como conta o pesquisador Peter Rudi Lapezak, autor do livro “Centenário da Comarca de Ponta Grossa 1880-1980”. “Na época, o prédio era muito maior do que a necessidade da Comarca”, lembra. Por isso, outras atividades também aconteceram no local, como Coletoria Estadual, a Delegacia de Polícia, tabelionatos, Cartórios do Crime e de Registro Civil e o atendimento jurídico gratuito ofertado pelo curso de Direito da UEPG.
Passam 55 anos e o prédio ganha nova função, com a cerimônia de abertura do Museu Campos Gerais, em 28 de março de 1983. O Fórum cresceu e precisou ser transferido para nova sede, em Oficinas, e o espaço histórico foi cedido à UEPG. Na noite festiva, autoridades e imprensa comemoraram as centenas de pessoas que visitariam, nos próximos vinte anos, o acervo histórico e cultural do MCG, e ficariam maravilhadas com a grandiosa escadaria de entrada do edifício. O imóvel foi tombado pelo Patrimônio Cultural do Paraná em 03 de novembro de 1990.
Por conta de danos estruturais, o Museu foi interditado em 2003 e transferido para o “antigo Banestado”, na mesma quadra, na confluência das ruas Engenheiro Schamber e XV de Novembro. O prédio aguardou quatro décadas pela próxima solenidade: na manhã da terça-feira, dia 6 de fevereiro de 2024, os convidados, autoridades civis e universitárias, reuniram-se para a entrega da obra de restauro que dará início a uma nova fase na história do quase centenário edifício.
A licitação para restauro do edifício foi realizada pela primeira vez em 2008, época em que o atual reitor, Miguel Sanches Neto, ocupava o cargo de Pró-reitor de Extensão e Assuntos Culturais. “Durante uma década e meia, trabalhei para que esse prédio pudesse ser restaurado e receber um anexo que fosse moderno e ao mesmo tempo desse infraestrutura para o prédio histórico”, relembrou. “Para mim, esse é aquele momento em que o sonho inicial se transforma em uma coisa concreta, que é essa obra que a UEPG entrega para a comunidade”.
Em 2010, a UEPG captou R$1 mi via Lei Rouanet, valor utilizado para reforma nos pontos mais emergenciais da estrutura: forro, vigamento e telhado, bem como a pintura externa e interna do pavimento térreo. Na solenidade de entrega do restauro, o Presidente do Conselho Estadual de Educação e Reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa por três gestões, professor João Carlos Gomes, rememorou uma conversa que teve com o professor Miguel Sanches Neto há 16 anos. “Hoje, entrando aqui, vi o anexo ao lado e me lembrei de quando o Miguel me chamou e disse: vamos recuperar este prédio, reitor, com um anexo moderno de vidro e um café no último piso”. Na época, o restauro não foi possível, mas foram realizados reparos que mantiveram a estrutura até 2021.
“Celebremos esta história e a promessa de futuro deste momento”, exaltou o vice-reitor da UEPG, professor Ivo Mottin Demiate. “1928, 1983, 2003 e, finalmente, 2024, são anos emblemáticos para a história da interiorização do Poder Judiciário, para a UEPG e para a cultura ponta-grossense, na medida em que este é um prédio-símbolo da cultura, memória e identidade local”.
O professor e juiz federal Antônio César Bochenek, que apresentou o projeto ao Ministério, reforçou a importância dos valores investidos no restauro e parabenizou a todos que se esforçaram para tornar realidade o sonho de reabrir o espaço à comunidade. “O prédio histórico, ora reinaugurado como museu dos Campos Gerais, representa a memória viva do Judiciário na cidade de Ponta Grossa. Lá, por muitos anos, foram realizados os trabalhos dos operadores do Direito”, destaca. “A simbologia da presença de um dos poderes do Estado também faz parte da construção das memórias princesinas”.
Abertura ao público
“Eu não tenho dúvidas que a volta para o seu lar oficial vai vai consolidar o Museu Campos Gerais como um dos grandes museus do estado do Paraná”, comemora o diretor do MCG, professor Niltonci Batista Chaves. Além de simbolizar um salto de infraestrutura e acessibilidade, é um retorno ao espaço repleto de memórias afetivas e simbolismo político. “Ocupar o prédio histórico nos dá condição de continuar trabalhando com a perspectiva do museu como um espaço de produção de ciência, de conhecimento científico, de tecnologia e de inovação”.
Durante a solenidade de entrega do restauro, o representante da Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (Seti) no evento, Renê Wagner Ramos, destacou a relevância do restauro do Museu, que para ele é uma referência no Paraná, como parte da rede universitária, única no Brasil. Ele também exaltou a exposição inédita de Poty Lazzarotto, acrescentando que, depois de lançada no MCG, a exposição segue para as demais Universidades paranaenses. “Vocês têm uma joia na mão, joia esta que será importante em 2024 e 2025 no contexto das parcerias que temos com a Universidade”.
Em paralelo, a equipe do Museu, em conjunto com profissionais museólogos contratados, elabora um grande projeto museológico, com o planejamento dos espaços, aquisição de mobiliário e equipamentos e transferência do acervo para composição de exposições permanentes. Segundo o diretor do MCG, este processo deve ser concluído no segundo semestre de 2024. Até então, estão planejadas pelo menos três exposições itinerantes, que devem trazer novamente visitantes ao prédio histórico.
Importância para a história local
Na década de 1920, Ponta Grossa estava em pleno processo de urbanização. Como as cidades coloniais portuguesas, o centro da cidade se forma no entorno de uma praça – no caso, a Praça Marechal Floriano Peixoto. Como explica a professora e historiadora Elizabeth Johansen, a praça reunia as representações de diferentes poderes. Em uma de suas faces, a Igreja Católica, com a Catedral; em outra, o poder militar representado pelo Quartel General; a elite campeira que frequentava o Clube Pontagrossense (hoje Clube Ponta Lagoa); e a representação do poder judiciário, com o antigo Fórum. “A presença daquele imóvel naquele local é exatamente essa representatividade da importância do Poder da Justiça da aplicação das leis”.
A cidade de Ponta Grossa, emancipada de Castro, crescia rapidamente. “Ponta Grossa já era uma urbe, uma cidade, com o estabelecimento de duas linhas ferroviárias importantes que ligavam o litoral do Paraná com o interior do estado e que ligavam o estado de São Paulo com o estado do Rio Grande do Sul. Ponta Grossa era um entroncamento de caminhos”, situa a professora, que foi uma das fundadoras da Associação de Preservação do Patrimônio Cultural e Natural (Appac). Nesse ritmo de desenvolvimento urbano, se tornava necessário ter mais do que a figura do juiz de paz (que já existia desde meados do século XIX), mas também Varas de Justiça e o estabelecimento de um Fórum. “É nesse contexto que a construção do prédio do antigo Fórum se efetiva”.
São várias camadas de representatividade para a história local. A arquitetura eclética é representativa de seu tempo, mas também dos diferentes grupos que formaram a população da cidade, como os imigrantes europeus que trabalhavam na construção civil e marcenaria e materializaram seu trabalho e sua cultura no imóvel. Com a transferência do prédio para a Universidade, nos anos 1980, acrescenta-se mais um nível: a função cultural de sediar um museu universitário.
“Essa é a minha história – e olha o quanto minha história se vincula à história deste imóvel. Imagine quantos ponta-grossenses se identificam, se reconhecem, porque aquele prédio constitui sua memória, seu ser ponta-grossense, sua identidade espacial”, provoca a historiadora. “É um imóvel belíssimo, arquitetonicamente falando, é um imóvel riquíssimo, histórica e culturalmente falando, e é um presente da UEPG para comemorar os 200 anos de Ponta Grossa”.
Entregar o sonho da Universidade é, em parte, responsabilidade da professora Andrea Tedesco, pró-reitora de Planejamento da UEPG. “Ver esse sonho, que foi compartilhado por muitos, sendo materializado e entregue é motivo de muita alegria e orgulho de todos que trabalharam para que isso fosse possível”, comemora. “Estamos entregando um novo espaço acadêmico, de pesquisa e extensão, de arte e cultura mas, principalmente, um espaço para a população de Ponta Grossa, que poderá reavivar suas memórias do prédio e construir novas memórias”.
A obra constituiu um desafio para as equipes da Pró-reitoria de Planejamento (Proplan) e da Prefeitura do Campus (Precam) da UEPG. As fiscais da obra, a arquiteta e urbanista Emanuele de Almeida, diretora de Planejamento Físico da Proplan, e Eloise Langaro, diretora de Obras e Fiscalização da Precam, explicam que o restauro do Museu foi um processo repleto de singularidades e diferente de outras obras executadas pela Universidade. “Por estarmos em uma instituição de ensino, pudemos compartilhar com nossos alunos muitas das experiências vividas na obra”, exaltam. “Trata-se de uma obra, de um prédio, mas também de um grande laboratório de ensino e pudemos aproveitar essa oportunidade de crescimento profissional coletivo”.
A preocupação se manifestou no cuidado com que cada uma das pessoas envolvidas no restauro realizou seu trabalho. Além de preservar e recuperar os itens originais, houve um esforço por atualizar as instalações elétricas e hidráulicas da edificação, para trazer segurança para funcionários, visitantes e aos próprios acervos do Museu. “Infelizmente não são poucos os casos de museus e prédios históricos foram degradados e até mesmo acometidos por incêndios devido à falta de manutenção, sendo a segurança um dos maiores objetivos desta restauração. Destaca-se ainda que a modernização dos espaços expositivos, sistemas de iluminação, condicionamento de ar, sistemas de prevenção contra incêndio e acessibilidade proporcionam um ambiente mais acolhedor e acessível, podendo assim atrair um público mais amplo”, explica o prefeito do Campus.
Esse “senhor de respeito” entrou na equação nos momentos de tomada de decisões. “Muitas foram as reuniões que fizemos para várias das etapas construtivas e que concluímos sem definir ao certo o que seria feito, esperando respostas possíveis dadas pelo edifício. Argamassas, pinturas, janelas didáticas, descidas de águas pluviais, trajetos para as instalações, posição das cisternas, foram algumas das decisões que o edifício nos deu”, lembra Kathleen.
O projeto arquitetônico do prédio de 898,64 m² e dois pavimentos é do engenheiro Ângelo Lopes. A construção ficou a cargo de Paulo Ferreira do Valle, que também construiu outros prédios da cidade, como a Mansão Vila Hilda. Nas fachadas, a arte foi executada por Rodolpho Roedel e pelos irmãos Max e Alberto Wosgrau; enquanto que a carpintaria foi feita por Roberto Amadio. Na entrada, um grande portão de ferro, produzido por Rodolfo Metzentin; e no teto da Sala do Júri, saguão superior e entrada, decorações em relevo feitas por Luiz Collares e Vicente Madalozzo.
Nas “janelas didáticas” espalhadas por todo o prédio, os visitantes poderão observar um pedaço do passado, seja na pintura das paredes, em que a tinta foi descascada com cuidado para revelar o que havia nas camadas inferiores; ou no piso, onde uma janela em vidro permite observar a estrutura de circulação de ar no subsolo; ou ainda na parede em que o reboco foi removido para mostrar a técnica de estuque, utilizada nas paredes do piso superior.
A foto antiga da Sala do Júri mostra que havia arabescos ao longo de toda a parte superior das paredes. Eles são afrescos, pinturas feitas enquanto a argamassa ainda estava úmida. Os pigmentos eram misturados em água e depois aplicados sobre a parede ainda “verde”, ou seja, enquanto a massa não havia secado. Isso faz com que os pigmentos fiquem impregnados na parede. Essa é uma técnica utilizada desde a Antiguidade para pintar murais. A janela didática aberta acima da janela comprova justamente isso: os afrescos ainda estão lá, por baixo de quatro camadas de tinta. Agora, estão preservados pelo trabalho cuidadoso da artista plástica e restauradora Cristina Sá. Outra “janela” mostra uma pintura mais recente, em que tons de dourado e verde permeiam elementos decorativos, margeados por linhas que imitam um revestimento amadeirado.
Detalhes
Um novo edifício, nos fundos do Museu, vai abrigar as áreas administrativas, reserva técnica e laboratório de conservação. Mas, mais importante que isso, permite o acesso ao segundo pavimento do prédio histórico com acessibilidade, utilizando um elevador e uma passarela que interliga os dois prédios. A fachada espelhada da edificação moderna foi projetada para espelhar a fachada histórica, denotando a preservação da memória e a passagem do tempo. “O Museu está onde a cidade surge e onde ela cresce. Nós buscamos manter a história, mas também queremos desenvolvimento”, enfatiza Sanches Neto.
“O edifício restaurado ganhou muitos equipamentos que atualizaram o espaço para receber muitas pessoas, sem deixar de ser que ele realmente sempre foi”, explica a arquiteta. A descrição do que foi feito no prédio deixa claro o cuidado e o carinho com que o espaço foi preparado para voltar a receber a comunidade princesina: “As salas para exposições mantém suas características espaciais através do restauro de pisos de madeira mantendo os esquemas originais; as janelas que apresentam folhas de madeira interna e folhas de vidro externa, acompanhando a fachada, inclusive sua curva; as portas altas de duas folhas, por vezes com bandeiras de madeira que permitem a passagem da luz; o pé direito alto com forro de madeira, também em esquema de colocação original, que possibilitam grande beleza e conforto espacial. Foram restaurados os elementos decorativos que lhe conferem grandiosidade, entre eles os forros de estuque, os ornamentos de madeira esculpida, as luminárias, as pinturas artísticas e ladrilhos hidráulicos”. Uma obra repleta de detalhes e de personalidade.
Texto: Aline Jasper | Fotos: Aline Jasper, Jéssica Natal, acervo do Museu Campos Gerais